As “declarações do colaborador” do artigo 4º, §16, da Lei n˚ 12.850 de 2013, a justa causa para a ação penal e o sentido conferido por princípios

Artigo publicado no portal do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE) em 18/10/2022

O artigo 4º, parágrafo 16, da Lei n˚ 12.850/2013 determina que não serão proferidas “com
fundamento apenas nas declarações do colaborador” quaisquer decisões que decretem
medidas cautelares, receba a denúncia, nem a prolação de sentença condenatória.

Para o que se propõe este trabalho, nos basearemos em um caso hipotético envolvendo o
dispositivo acima e o colocando sob os argumentos de Charles Taylor em “Seguir Uma
Regra”, capítulo da obra Argumentos Filosóficos 1. Por esta perspectiva da filosofia da
linguagem, propõe-se que o saber ou o conhecimento são resultado de um processo de
compreensão a partir de regras preestabelecidas, em abstrato, formando um pano de fundo
basilar.

Ações inseridas em determinados contextos regulados por regras, como a analogia do
jogo ou do direito2, devem ser valoradas sob a constelação de regras e princípios em
abstrato. Isto porque, é este pano de fundo que preenche o sentido do movimento e
norteiam as finalidades do próprio jogo ou do processo judicial. Ou seja, só faria sentido
um drible em direção oposta ao gol se a finalidade é buscar a melhor jogada para levar o
time ao ataque.

O caso em análise conta com uma pessoa imputada por um delator no âmbito de um
acordo de colaboração premiada como premissa fundamental. O Ministério Público
oferece denúncia pelos crimes atribuídos pelo colaborador, contudo, as provas de
corroboração apresentadas são poucas e não o vinculam. Sabe-se que o acordo ocorre no
âmbito de uma ação penal originária, que o delator responde como acusado e o imputado
figura como testemunha. Assim, a colaboração premiada ocorre num ambiente de
produção anterior de prova, trazendo novos elementos a partir do acordo.

Portanto, há um histórico de provas já produzidas, inclusive a testemunhal pelo imputado,
e, neste contexto, a colaboração premiada vem a somar, mas, oferecendo provas de
corroboração que em nada confirmam as declarações. Celebrado o acordo, não foram
realizadas novas investigações para confirmar ou negar a veracidade das palavras do
delator. Há aqui, portanto, forte relação com a justa causa para a ação penal contra o
terceiro imputado, isto porque, para o recebimento da denúncia contra si devem haver
elementos indiciários de autoria e prova da materialidade do delito atribuído.

Assim, se percebe a importância do termo empregado pelo legislador na redação do
parágrafo 16 do artigo 4º, caput, da Lei 12.850/13. Se nenhuma denúncia pode ser
recebida com base apenas nas declarações do colaborador nem se pode condenar alguém
sob este único fundamento, é preciso, portanto, entender o que significam as declarações
do colaborador.

Para a compreensão do dispositivo legal e suas repercussões, é necessário, portanto,
entender qual o alcance do sentido que o termo empregado pelo legislador pode oferecer.
Esta tarefa pressupõe observar definições que deem concretude ao termo, para que ele
possa se referir a uma conduta física ou jurídica que dela são geradas consequências
igualmente físicas ou jurídicas.

Desta forma, de declarações do colaborador pode-se extrair sentidos diversos. Por
exemplo, pelo termo se pode entender que o legislador atribuiu determinadas
consequências considerando os depoimentos prestados pelo colaborador na fase de
celebração do acordo, portanto, as suas palavras e declarações. Outro sentido diverso é
compreender que suas palavras, num contexto de um acordo de colaboração premiada,
são inúteis ou sem valor se desacompanhadas de provas de corroboração, uma
determinação do artigo 3º, §4º, da Lei n˚ 12.850/2013.

Assim, a depender de como se entende o que são as declarações do colaborador, a
denúncia pode ser recebida e a ação penal pesar sobre terceiros imputados e o próprio
colaborador e também condenar um terceiro imputado. A relevância se dá justamente no
que difere o sentido.

Se por declarações entende-se apenas as palavras do colaborador, as consequências
podem se satisfazer a partir das afirmações, mas não somente. Desta forma, exige-se que
as palavras estejam ligadas a quaisquer outras fontes de prova, podendo ser, inclusive, os
elementos de corroboração trazidos pelo colaborador. O que parece ser razoável,
considerando que estes elementos são indispensáveis para o acordo.

Por outro lado, se se entende que são a narrativa do colaborador e o material probatório
que a acompanha que constituem o elemento mínimo da fundamentação do juiz para as
decisões elencadas, surge o dever de que os documentos de corroboração trazidos pelo
colaborador estejam conectados a outros elementos de prova colhidos pelo órgão de
persecução obtidos através de outras fontes.

Assim, tem-se um critério de fundamentação mais rigoroso e, ao mesmo tempo, a garantia
de que para a suficiência e efetividade do acordo frente a terceiros não estarão amparadas
apenas no que foi colhido pelo acordo. Também, exige o esforço cognitivo da decisão em
elencar expressamente a conexão entre estes elementos colhidos pelo acordo e externos a
ele, e, sugere, ao mesmo tempo, a necessidade de o órgão de persecução realizar novas
investigações que confirmem a veracidade das informações prestadas pelo colaborador.

Ou seja, o sentido do termo empregado pelo legislador pode-se mostrar como um
elemento do próprio sistema, cujo rigor na maneira como se lida com seus instrumentos
depende do que é levado em conta para atribuir consequências jurídicas do próprio
instituto. Portanto, se é fundamental definir o que é preciso considerar para se decretar as
decisões elencadas no artigo 4º, §16, da Lei n˚ 12.850/2013, é igualmente indispensável
entender a adequação da colaboração premiada ao sistema processual penal brasileiro.

Desta maneira, para se entender o sentido do termo declarações usado pelo legislador
num contexto de delimitação dos efeitos de um acordo de colaboração premiada, percebe-se o pano de fundo como o sistema acusatório, que orienta o processo penal constitucional brasileiro.

Este pano de fundo são princípios construídos ao longo de séculos de esforços acadêmicos
e de política-criminal que subverteram a ordem de um processo penal inquisidor. Este
conjunto de regras, que definem o sistema sob uma concepção progressista de Estado de
Direito, cria limites importantes para o exercício punitivo do Estado. Estes princípios,
positivados no texto constitucional e implícitos, como a presunção de inocência e o ne
bis in idem, respectivamente, formam um arcabouço interpretativo principalmente para
os casos de conflito de interpretação de normas. Exemplo breve disto é a discussão da
possibilidade ou não da execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em
julgado da sentença condenatória violar o princípio e a norma da presunção de inocência.

Portanto, tem-se uma prática social, um processo constituído por etapas e normas que
atinge uma finalidade, cujo pano de fundo é concebido por uma constelação de regras que
limita o poder de ação do Estado, que orienta o sentido das ações concebidas neste
sistema.

Desta forma, a colaboração premiada é uma ação, concebida sob a ideia de um conjunto
de atividades normativamente regulados que gozam de determinado sentido e finalidade
no contexto que é praticada. Se o sentido das ações é oferecido pelas regras ou pelas
práticas sociais, são elas que orientam as motivações e preenchem as finalidades das ações
e, ao mesmo tempo, às contextualizando no campo em que são praticadas.

Assim, é fundamental atribuir ao termo “declarações” do artigo 4º, §16, da Lei n˚
12.850/2013 um sentido que corresponda às regras do jogo. Ou seja, se as palavras do
colaborador não têm qualquer valor sem os documentos que as corroboram, e que há regra
expressa que a colaboração premiada não é o único meio de prova suficiente para surtir
repercussões, portanto, não há sentido em permitir decisões com fundamento apenas na
conexão entre afirmações e documentos apresentados pelo colaborador. Exige-se mais,
que tanto palavras quanto documentos apresentados sejam expressamente na decisão
conectados a elementos externos, já produzidos e posteriores que confirmem.

Noutras palavras, faz sentido exigir do juiz que realize um juízo de valoração sobre a
conexão do que foi fornecido pelo colaborador em palavras e evidências com outras
fontes de prova produzidas pela investigação. Esta é a importância de precedentes do
Superior Tribunal de Justiça como o AgRg no RHC 128.000/PR, de relatoria do Ministro
Felix Fischer, julgado pela 5ª Turma em 15/12/2020, que sedimenta a impossibilidade de
recebimento da denúncia pela mera conexão entre declarações e provas de corroboração,
uma vez que, sem conectar-se com elementos externos não têm valor probatório.

Contudo, para isto, é necessário exigir um juízo de cognição que efetivamente descreva
e valore a conexão entre as declarações, as provas de corroboração e os elementos
externos, não sendo suficiente uma afirmação genérica. Caso contrário, fosse admitida a
mera afirmação de conexões entre o conteúdo do acordo e elementos externos, sem
menciona-las e valora-las, viola-se a justa causa e, também, cerceia o exercício da ampla
defesa.

Para além das repercussões à decisão, esta compreensão também pode sugerir que os
órgãos de persecução partes do acordo não se satisfaçam com o que foi obtido com a
colaboração premiada, mas que, ainda, realizem o esforço de obter a confirmação da
veracidade das informações fornecidas. Ainda, tem-se, também, um preenchimento de
sentido sob a justa causa contra terceiros imputados por colaborador, delimitando seus
critérios em tais hipóteses.

Desta maneira, o sentido do termo declarações alcança uma harmonia com pressupostos
do sistema acusatório, limitando o poder de punir do Estado a partir de controles
conferidos pela interpretação da norma, respeitando e reforçando as finalidades do
processo.

Finalmente, quanto a um controle jurídico sob a persecução penal, pode-se também
observar a instrumentalização desta interpretação da norma observando o julgamento do
Agravo Regimental em Recurso em Habeas Corpus n˚ 138.014/RJ, em 23.11.2021, em
que a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça enfrentou o problema dos efeitos do
acordo em face de terceiros imputados.

Naquela oportunidade, a unanimidade dos Ministros reforçaram a vedação da denúncia
apresentar como elemento de prova único a colaboração premiada. Ademais, naquele
julgamento, também se fixou a imprescindibilidade da realização de diligencias
investigativas complementares para checagem e confirmação das declarações do
colaborador quando as provas de corroboração apresentadas são imprecisas ou
questionáveis, portanto, sob um juízo de valoração da conexão entre os elementos de
prova em paralelo à justa causa e à redação do artigo 4º, p. 16, da Lei n˚ 12.850/13.

O acórdão reforçou a necessidade de um controle objetivo dos efeitos da colaboração
premiada, que ocorre, sabidamente, na prolação da sentença, mas, antes de sua declaração
definitiva quanto aos efeitos para terceiros imputados. No julgamento do AgRg em RHC
n˚ 138.014/RJ a 6ª Turma do STJ discutiu se o acordo naquele caso era ou não o único
elemento de prova, tendo o Ministro Rogério Schietti entendido que ele estava
acompanhado de outras provas. Contudo, a definição foi pela importância das diligências
investigativas de confirmar a veracidade da colaboração e sua relação com a justa causa
para oferecimento da ação penal contra terceiros imputados.

Assim, ainda que o artigo 4º, caput, §11, da Lei n˚ 12.850/13 aloque na sentença a
apreciação da eficácia em definitivo no momento da sentença, pode haver na justa causa
e no recebimento da denúncia um controle que reconheça os efeitos, a veracidade e
verossimilhança da colaboração premiada frente a terceiros imputados. Ainda, põe-se sob
um mesmo juízo de valoração quanto à conexão expressa com elementos de prova
externos já produzidos e outros posteriormente obtidos para confirmação ou verificação.

Desta forma, além do controle de legalidade e eficácia da persecução penal, passa-se a
exigir à composição da justa causa, nestas hipóteses, seus critérios clássicos vinculados a
elementos de prova já produzidos e posteriores de confirmação da veracidade das
declarações, preenchendo os sentidos da norma do parágrafo 16 do artigo 4º, caput, da
Lei n˚ 12.850/13 e do artigo 395, caput, inciso III, do Código de Processo Penal.

1 TAYLOR, Charles. “Seguir uma regra”. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 181-197. 2 “Aplicar o direito não é algo independente ou distinto do conhecer as regras de xadrez. A compreensão
do direito dá-se enquanto se joga, pratica-se ou vive-se segundo o direito, pois ela consiste em saber o que
se está fazendo, e a interpretação no sentido estrito consiste em estabelecer os casos duvidosos”. LOPES,
Jose Reinaldo de Lima. Curso de Filosofia do Direito – o direito como prática. Barueri: Atlas, 2022, p.
130.

BIBLIOGRAFIA
LOPES, Jose Reinaldo de Lima. Curso de Filosofia do Direito – o direito como prática.
Barueri: Atlas, 2022.
TAYLOR, Charles. “Seguir uma regra”. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Loyola,
2000

Leia o artigo no IBDPE

Quer trabalhar conosco?

Ficamos contentes! Mande um e-mail para

atendimento@peterfilho.com.br